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Mulheres de Atafona

Como o afeto e o espírito empreendedor preservam a cultura e promovem reinvenção, frente a um dos maiores desastres ambientais brasileiros

JORNALISTA: ANA LUIZA CASSALTA

“As ruínas são restos, mas não do que acaba
E sim do que morre pra recomeçar”

Oswaldo Montenegro – Ruínas de Sol

Quando o sol nasce, o horizonte é ainda mais impressionante. Nas areias da Praia de Atafona, o cenário é de beleza e destruição. Intriga, cativa e convida os visitantes que desejam mergulhar em um mar de histórias, memórias e novas descobertas. Nos últimos 50 anos, 14 quarteirões foram engolidos pelo mar neste distrito de São João da Barra, no Norte do Estado do Rio de Janeiro. O mais grave processo de erosão costeira brasileiro, que está em ritmo acelerado, quando se compara a qualquer outro local do mundo. E que é vivenciado diariamente por seus moradores, que sempre veem uma paisagem diferente no horizonte.

Passei duas semanas nessa terra acolhedora e de situação tão singular. E descobri que sua maior riqueza cultural está no povo que ali habita. Em sua capacidade de reinvenção, adaptabilidade e resiliência. Me aproximei de mulheres de classes sociais diversas, de idades entre 14 e 80 anos. Para entender como se estabelecia a relação delas com aquele ambiente de constante incerteza. Em todas elas, encontrei 3 características em comum:

  • Uma significativa relação de afeto com este território, suas memórias e estilo de vida.
  • Uma forte mentalidade empreendedora para identificar novos caminhos e criar soluções para fazer acontecer.
  • Um vínculo emocional profundo com o conceito de lar e de família, que as ajuda a encarar e superar as dificuldades.

O que motiva a permanência?

Segundo o filósofo Baruch Spinoza, “afeto” é um estado da alma, que faz com que a pessoa tenha mais ou menos disposição de agir e reagir, dependendo da forma como é afetada e deseja afetar o outro. Atafona afeta seus moradores e visitantes. E a reação deles é agir para se adaptar e permanecer. E aproveitar o convívio com este lugar, enquanto isso for possível.

Esse tipo de laço afetivo da pessoa com o território é percebido em todos os relatos femininos mapeados durante o projeto de Pesquisa e Preservação da Memória. E é elemento fundamental para garantir a intenção de regeneração, resistência e permanência.

No livro “Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente”, o geógrafo sino-americano Yi-Fu Tuan apresenta o entendimento de que essas conexões com o lugar são sempre únicas e humanísticas, pois partem de uma vivência pessoal. Uma construção de identidade de lar que é experiência intransferível.

Em lugares de catástrofe, em que houve morte ou destruição, como é o caso de Atafona, junta-se uma camada de delicada importância: o trauma emocional pela perda da identidade de lar. “A moradia sustenta parte considerável da autoimagem de uma pessoa, situando sua vida tanto geograficamente quanto psicologicamente. De certa forma, o espaço físico projeta a singularidade das trajetórias pessoais e profissionais, apresentando-se também como um instrumento de individuação”, explica a psicóloga Barbara Caneira Reis.

A busca por reconstruir a vida em outra casa, em local próximo à perda original, pode ser parte dessa incansável luta por manter viva a própria identidade individual. Se reconhecer no que já é familiar, retomar o ponto de partida, para então, a partir deste momento, conseguir conscientemente dar novos passos em busca de um futuro cheio de possibilidades.

Foto: Ana Luiza Cassalta

Contexto socioambiental

Em Atafona, presenciamos o encontro do mar com o rio. É ali que o delta do Rio Paraíba do Sul, um dos principais da região Sudeste, se encontra com o Oceano Atlântico. Ou melhor, era ali. O assoreamento do rio fez com que o delta de deslocasse e agora seja em São Francisco do Itabapoana. 

É ali também que, segundo os especialistas, há uma convergência de condições naturais e diferenciadas próprias da região, como dinâmicas de correntes marítimas e ventos fortes.

Mas, além do que é natural, é em Atafona também que enxergamos ao vivo o resultado do impacto humano na natureza em “prol do (des)envolvimento das cidades”. Desde a década de 50, uma série de estratégias de desvio de água foi realizada ao longo do rio, visando o abastecimento doméstico, industrial e agrícola de cidades como Rio de Janeiro e São Paulo. 

Essas intervenções provocaram assoreamentos e tornaram o fluxo da água insuficiente para enfrentar o oceano. Com isso, o mar vem desde então ultrapassando as barreiras naturais. Invadiu a cidade e já submergiu mais de 500 imóveis, incluindo casas humildes e mansões. Comércios, hotel, posto de gasolina, farol da praia e igreja.

 

Os números impressionam. As imagens de antes e depois impactam. Os relatos de quem vivenciou tudo isso sensibiliza. Atafona faz parte de um grupo seleto e não desejado: os 4% de casos mais graves de erosão costeira do mundo. Neles, o mar avança impressionantes X metros por ano. Enquanto a média mundial é de Y metros por ano.  

Neste distrito de cerca de 6.000 pessoas, centenas já ficaram desabrigadas. Dezenas já perderam sua casa por mais de uma vez. Em um contínuo processo de geração de novos refugiados ambientais. Segundo a revista National Geographic, mesmo que a humanidade consiga controlar as emissões de gases de efeito estufa até 2050, 200 milhões de pessoas podem se tornar refugiadas ambientais pelos impactos do aumento do nível do mar e pelas inundações frequentes que vão ocorrer pelo mundo. Se a humanidade não conseguir alcançar esta meta até 2050, as consequências são imprevisíveis.

Capacidade de reação e transformação

Os processos de desterritorialização e de reterritorialização são acelerados ou bloqueados, de acordo com o grau de afeto envolvido. A Teoria dos Afetos de Spinoza defende que o ser humano é afetado positiva ou negativamente pelos encontros que vivencia ao longo da vida. E que tem sua potência de reagir passivamente ou agir ativamente, conforme consiga direcionar seu pensamento e atitude para explorar mais essa sua potência interna.

Sem perspectiva concreta e definitiva de solução para a questão ambiental, como a comunidade de Atafona se afeta e é afetada então pelo encontro com seu território?

Ao longo da pesquisa, além de pesquisa documental, entrevistei professores da UENF, profissionais que atuam no Governo local, moradores e visitantes do distrito. E identifiquei oito mulheres que representam essa capacidade de ação.

Foto: Ana Luiza Cassalta

Dentre as pesquisadas, é unânime o entendimento de que a comunidade quer positivar o olhar que recai sobre ela. Centenas de jornalistas de todo o mundo, turistas e curiosos em geral visitam Atafona todos os anos. Como então otimizar esse interesse, atraindo novos admiradores e reconquistando os antigos frequentadores? Até a década de 80, Atafona era o balneário favorito das famílias abastadas de Campos dos Goytacazes. E, por isso, exibia alta circulação de pessoas, investimentos e circulação de renda entre seus habitantes.   

A comunidade deseja promover mais suas tradições culturais, divulgar suas atrações naturais e estimular um turismo sustentável e autêntico. Evitando, assim, rótulos que enfocam apenas o negativo, da tragédia ambiental, das ruínas a olhos nus e do cenário de catástrofes emocionais e patrimoniais. Identificar essas oportunidades e criar soluções são capacidades empreendedoras que muitos já possuem e exercem no dia a dia. Conforme se identifiquem como grupo, unindo esforços, o potencial positivo da comunidade afetar presente e futuro se amplia ainda mais.

O distrito que nasceu como uma comunidade de Pescadores vinda da Região dos Lagos, hoje já viu sua lógica econômica ser modificada, devido à proximidade ao Porto do Açu, maior complexo portuário e industrial de águas profundas da América Latina. Muitos filhos de pescadores de Atafona até querem continuar trabalhando com as águas. Mas agora já têm acesso à faculdade e, boa parte visa oportunidades de trabalho com carteira assinada em cargos ligados a atividades marítimas.

Esse movimento de reação positiva ultrapassa o bloqueio que o medo trouxe, ao longo de toda a catástrofe ambiental. “A vida não caminha do mesmo jeito que antes da perda. Esse medo você nunca mais perde, passa a conviver com ele”, afirma o geógrafo alemão Jan Simon Hutta, em seu artigo científico “Territórios Afetivos: cartografia do aconchego como uma cartografia de poder”.

Segundo ele, o potencial humano de afetar e ser afetado é realizado, primeiramente, onde as pessoas moram e criam raízes: “Um afeto não pode ser controlado pela razão, mas pode ser vencido por outro mais forte, superando assim a tristeza, o ódio ou o medo, fortalecendo a potência de agir do corpo e da mente, que passa a pensar e agir por si mesmo, passando da passividade à atividade”.

Projeto de Pesquisa e Preservação de Memória - Lei Paulo Gustavo - Edital Diversidades em Diálogo RJ 2023

Idealização: jornalista Ana Luiza Cassalta e fotógrafo Flavio Veloso

      REALIZAÇÃO:

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